10.22.2007

No caderno que vinha na mala

Acordo ao som da chamada para a oração, que rapidamente descubro já não ser a primeira nem a segunda chamada. Este é, dizem-me, o único relógio que conta por cá. Olho para o relógio ocidental que trago comigo, uma espécie de teimosia cultural, e já é meio-dia, a hora da terceira oração, o que traduz doze horas de sono reconfortante, fruto da longa e cansativa viagem que nos trouxe de Portugal até Chefchauen em transportes públicos e que começara cerca de 36 horas. Do trajecto já se guardam algumas imagens arrebatadoras como o nascer do dia na transladada Vila Real de Santo António, ou o atravessamento a pé da fronteira Ceuta-Marrocos. Lá, em 500 metros fomos sugados por Africa. Pela primeira vez na vida compreendi o porquê dos autores de viagem darem tanto ênfase às estórias passadas nos atravessamentos de fronteiras. Lá, em 500 metros fomos invadidos na privacidade pelos marroquinos, no nariz pelo cheiro que dizem característico de Africa, nos olhos pelas cores berrantes com que tudo se pinta. De repente, em 500 metros tudo muda, os paradigmas, as crenças, o way of life, as relações e o seu contrário. Sempre fui um céptico do conceito de fronteira, derivado da sua natureza humana, mas há algo que se aprende sobre essa mesma humanidade ao atravessa-la, ao percorre-la a pé, sem artefactos, como se fez durante séculos, sente-se que é naquela artificial linha que se concentram as mudanças e deu-se até o caso de me pôr a pensar que seria muito bom ter uma daquelas linhas de fronteira de civilização, não essas que separam o que está uno, como as da Europa, nas escolas e universidades do meu país.
É no terraço superior da pensão Goa, com vista para toda a vila, encravada numa encosta das montanhas Rif, que recebo esta iniciação a Africa: o cheiro que vem com o vento que escorrega pela montanha abaixo, que se sobrepõe ao cheiro estático da cidade; as casas brancas com porções da sua volumetria pintadas a azul forte, mais umas portas rosa, amarelo, vermelho ou verde, que pintam esta colina construída diante de mim e a fazem transmitir uma alegria difícil de explicar, mas com certeza resultado de mais um passo meu em direcção à Terra, que sinto mais próxima de mim a cada dia que passo em viagem.

4.17.2007

No caderno que vinha na mala

Em Barcelona não se tiram fotografias a preto e branco, mas por vezes, estas obtêm-se. É como se ela fosse a casa do Deus das cores, omnipresente e omnisciente, com infinita ciência do belo, que se exprime na harmonia com que os raios do Sol são lá reflectidos. Barcelona é a preto e branco aqui, a cores mediterrâneas ali, dragões chineses nas ombreiras das portas, ao lado de bancas com chás marroquinos, casas que vendem cerâmica catalã em frente ao quebab, ou aos hambúrgueres. As cores de Barcelona fazem-se de um pouco de tudo o que neste Mundo mexe, não a retalho, mas em síntese. As pessoas em Barcelona entregam-se à criação da cultura global, por soma de todas as partes do mundo que ali coabitam, e que se tentam adaptar a Barcelona pondo tudo aquilo que trazem consigo na mala, ao serviço desta nova forma de lugar, o lugar global.
Se a arte pode ser tudo o que nos faz experiênciar algo transcendente, então esta cidade faz-nos transcender em cada esquina, em cada mercado, em cada bairro, em cada colina, também pelos museus, pelas casas, pelas igrejas, mas principalmente pelo seu "modus vivendi", que não é do Bairro da Grácia, nem da Catalunha, nem de Espanha, nem da Europa, é do Mundo.
Ao fim da tarde, no Porto Velho, tomava um chá e apreciava aquele crepúsculo laranja escuro com castanho claro, e dou por mim a pensar numa frase inscrita na camisola do empregado de mesa que em Português seria "Eu não sou Espanhol, sou Catalão". Talvez um dia, num dialecto universal, fruto da civilização global, a palavra Catalão signifique Cidadão do Mundo.