4.19.2011

Terrorismo, Urbs e a resistência possível

Rui Aristides

“If the U.S. is a leading terrorist state, if, as you say, Britain is another example of a terrorist state, how do you distinguish between that kind of what you describe as terrorism and what they are saying “Osama Bin Laden is a terrorist”? Make the distinction.

“That’s very simple. if they do it its terrorism, if we do it its counter-terrorism.”[1]

Será que podemos colocar a distinção entre cidade e cidade-informal ou não-cidade, favela, musseque, nos mesmos termos? Se sim, será que a única justificação dessa distinção assenta na condição política entre império e dissidentes ou haverá algo mais?

A diferença entre polis e urbs.

A polis grega pode ser compreendida a partir da distinção entre politikè e oikonomikè, respectivamente, entre politica e economia. A última, para a sociedade grega, refere-se à oikos ou a casa, a unidade celular privada, oikonomikè é pois a gerência do domínio privado, no seu conjunto de relações despóticas, o homem é o rei da casa.

Politikè, inversamente, é a gerência das relações da esfera pública para o interesse público, é a ferramenta básica de funcionamento da polis, tendo nascido da própria.

Consequentemente, e concordando com Pier Aureli, “The principle of economy can be distinguished from the principle of politics in the same way that the house is distinguished from the polis.”[2]

Por seu lado o termo latim urbs implica, ao contrário da polis, um fazer cidade sem bases politicas, ou seja, uma ideia de cidade que se justifica apenas na estrutura física, essencial à vida, que materializa no território. A ideia de urbs permite-se actuar na condição de tabula rasa, tenha-se em mente as cidades romanas formadas de acampamentos militares. Logo, concordemos que “(…)urbs describes a generic condition of protected cohabitation reducible to the principle of the house and its material necessities.”[3]

À polis e à urbs equivalem, por isso, dois conjuntos distintos de conceitos, respectivamente: cidade delimitada (muralhada), público, estado, politica; cidade expansiva, infra-estrutura, privado, império, simbolismo.

Será necessário explicar este conjunto de conceitos, no entanto, em vez de os explicar um a um, gostaria de os expor a mais uma leitura da diferença entre polis e urbs na tentativa de esclarecer a dialéctica entre polis e urbs.

A lei para os gregos era designada de nomos, não regulava a acção politica por si, mas criava-lhe um enquadramento baseado numa forma espacial concreta, a da polis, e sua divisão entre público e privado; daí a diferença entre Aghora e oikoi.

Para os romanos existia a lex, de onde deriva a palavra lei, e é um conjunto de políticas, de leis, baseadas num consenso político e funcionando como um tratado. Era parte integrante da lógica expansionista romana, pois era através do tratado (lex) que os vários povos derrotados viriam a integrar o império.

Enquanto a nomos era o que limitava e sustinha a polis na sua unidade social e formal, a ideia de lex era precisamente o seu oposto, um conceito genérico e inclusivo que terá sido o que transformou Roma de uma polis para uma civitas, e como tal, para um império[4].

Civitas originou a palavra cidade e urbs derivou para urbanização. Na sua concepção romana, as duas complementavam-se, a primeira definia a condição social e politica para o que designamos hoje de cidadania, a segunda a genérica infra-estrutura necessária para o habitar, que actualmente designamos de urbano.

O que actualmente toma corpo na nossa utilização do território é o exponenciar, por um lado, da contradição entre a ideia de polis (cidade finita e politica) e a ideia de urbs (objecto-infinito); e por outro, a exponencial valorização de uma forma de urbs que parte não de uma gerência da coabitação pela lei (civitas), mas sim, de uma gerência económica, e que propositivamente dá pleno significa à acção de urbanização ( China, Índia, Brasil, Angola, etc…).

A No-Stop City dos Archizoom, mais do que ser uma peça artística forjada em ambientes de extremos e ácidos, uma exuberante ironia da decadência modernista, é acima de tudo uma perfeita previsão do que se veio a suceder com o fazer cidade.

Concordando com Pier Aureli, “No-Stop City ultimately “succeeded” in prophesying a world in which human associations are ruled only by the logic of economy and rendered in terms of diagrams and growth statistics.”[5]

O que se tem vindo a tornar mais claro é que a gerência da cidade caiu definitivamente sobre o domínio da technè oikonomikè, e como tal, tende-se a tratar cidade como oikos, como uma casa, o espaço privado por excelência, gerido despoticamente para o interesse de um pequeno sector da sociedade que a habita.

Nas palavras de Pier Aureli, resumamos a evolução da cidade moderna da seguinte forma:

“If, as stated before, the city began as a dilemma between civitas and urbs, between the possibility of encounter (the possibility of conflict) and the possibility of security, it has ended up as completely absorbed by the infinite process of urbanization and its despotic nature.”[6]

Dado isto, a distinção que Chomsky esclareceu relativamente à questão de quem exerce terrorismo aplica-se à distinção entre cidade e não-cidade. Esta, no fundo, representa a distinção entre aqueles que pertencem ao estado da civitas, os reconhecidos cidadãos da urbanização (império), e aqueles que não lhe pertencem, os dissidentes, os pobres; ou quando pertencem, apenas se lhes permite integrar a urbanização de forma segredada ou secundária. Com maior clareza, é a distinção semelhante à entre os que podiam aceder à Aghora e todos os outros, marginalizados da vida publica e politica da polis.

Não há melhor tipologia para explicar o mapeamento entre cidade e não-cidade que a casa grega, a oikos, na sua clara divisão entre o espaço dos escravos e o dos senhores da casa, está lançada a estrutura urbana, por exemplo, do Rio de Janeiro.

Então, a condição política imperial, de descendência romana talvez, é o contexto em que esta distinção se permite existir. No entanto, a lex deixou de ser política no seu sentido público, o seu derradeiro objectivo já não é a pax romana, observe-se o Iraque, o mais recente e emblemático exemplo de um programa imperial.

A lex e a pax romana foram transformadas no exposto pela personagem de Wagner Moura, Roberto Nascimento, na sequela do Tropa de Elite, na seguinte fala: “Prós políticos não era interessante que morresse logo, antes de depor, eu ia virar mártir dos direitos humanos em plena CPI e o Fraga ia transformar o governador em suspeito de assassinato. Só que o sistema não tem planejamento central nem directoria, parceiro! O sistema é um mecanismo impessoal, uma articulação de interesses escrotos.”

Por implicação civitas, o nível base de pertença política a uma sociedade, a condição de cidadania, peca por se encontrar suprimida de conteúdo; daí a extensiva utilização dessa palavra por sociólogos e políticos contemporâneos, entre outros, na tentativa de esconder ou preencher o vazio.

Consequente e independentemente das unidades políticas que são mantidas, sendo estas identidades sócio-simbólicas[7], actualmente tanto a infra-estrutura de várias sociedades bem como a sua gerência são simultaneamente genéricas, a-politicas e objectivas; e a urbanização é o seu suporte, o derradeiro mecanismo de controlo do território e seus habitantes.

É por isso que podemos observar entre os EUA e a China, dois extremos simbolicamente opostos no imaginário social e politicamente definidos como opostos, o mesmo uso da urbs no seu sentido original enquanto a pré-condição ou a condição infra-estrutural de coabitação. A urbs vem permitir por um lado, integrar todos os ‘cidadãos’ numa civitas simbólica e exercer o seu controlo, e por outro lado, a livre gerência do território pela technè oikonomikè.

Através da urbs todo o lugar é domesticado para a gerência privada da sociedade.

Consequentemente, diria que Chomsky está apenas em parte certo, pois quem define a diferença entre maus e bons não são principalmente os EUA ou o Bloco Ocidental, mas sim, a infra-estrutura, a gerência do mundo como uma casa. Quem é terrorista é pois quem é contra esse despotismo infra-estrutural, é quem é contra a urbs, é quem procura autonomia.

Face a isto, concordo com o que Rahul Srivastava escreve a propósito da luta pela autonomia de direitos dos Kolis no Dharavi, em Mumbai, Índia, que é o seguinte:

At the end of the day the triumph of Koliwada-Dharavi will be a triumph of Dharavi as a whole.”[8]

O que está em jogo nesta luta não é apenas a defesa da qualidade de vida de uma etnia, programa em si infrutífero dada a infra-estrutura dos problemas, mas sim, e mais importante, o esboçar de uma alternativa à pertença na urbz, um projecto de autonomia.

Neste processo purgam-se retóricas, ‘quem é o terrorista?’, ‘quem é cidadão?’, ‘qual é a cidade e qual a não-cidade?’. Invertem-se as dicotomias, por um lado, o terrorista, aquele que exerce terror, é a gerência económica da sociedade através do estado, por outro, o cidadão esfuma-se e todo o vazio da concha da cidadania é exposto, sendo substituído por uma comunidade política que luta por objectivos concretos.

Neste processo exercita-se o abolir da distinção entre cidade e favela, ambas são formas de coabitação e ocupação do território, ambas são cidade, não há ambas, não há uma autêntica diferença entre duas formas de fazer cidade a não ser a produzida qualitativamente pelos que governam o espaço urbano.

Onde este processo dará, o que dele resultará, não sei dizer. Haverá sempre o precipício do falhanço tão definido pelos vários projectos deste género, inaugurados na década de 1970 em várias ‘não-cidades’ da América latina. No entanto, talvez este projecto, o do Koliwada-Dharavi, traga consigo outras lições, talvez um melhor entendimento de como construir um projecto de autonomia na oikos capitalista de hoje em dia.

Se pensarmos na urbs como a pele desse corpo monstruoso[9] que é o capitalismo, então qualquer buraco, ferida, ilha nessa contínua pele inscreverá uma possibilidade de autonomia, a possibilidade de voltar a integrar o político no coabitar.

Incertezas à parte, o certo é que a presente gerência económica do coabitar sempre necessitará de terrorismo.



[1] Entrevista a Noam Chomsky por Evan Solomon, acerca do livro "Hegemony or Survival: America's Quest for Global Dominance". http://www.youtube.com/watch?v=10rTPSSmOFw&feature=related

[2] Pier Vittorio Aureli, “The possibility of an absolute architecture”, MIT 2011, p. 3

[3] Ibid., p.4

[4] Ibid., p 5

[5] Ibid., p. 20

[6] Ibid., p. 27

[7] Proponho que identidade socio-simbolica seja entendida como uma imagem que gera simbolismos, ou seja, uma imagem-ideia que se aporta ao imaginário social de dada sociedade. Descritivamente pode ter uma função semelhante à das imagens-ideias no mapeamento cerebral, não são em si verdades, mas sim sínteses e interpretações de experiências ou coisas às quais pretendemos aceder de forma imediata.

[8] http://dharavi.org/index.php?title=C.Communities_%26_Nagars_of_Dharavi/Koliwada

[9] “This capital-flesh oppresses us, but we are stuck within it. We hate it, but we are also compelled to love it, because we depend upon it for sustenance, and we cannot live without it. Understood according to the order of first causes, sub specie aeternitatis as Spinoza would have it, capital is parasitic upon the labor of the multitude. But existentially and experientially, the situation is rather the reverse: we are parasites on the monstrous body of Capital.”

Paul Shaviro, excerto retirado em: http://www.shaviro.com/Blog/?p=641

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